Em 24/06/2020 às 08h12
Jéssica Carolina Celestino Ferreira*
Os protestos recentes nos Estados Unidos e em outros países em razão da morte do ex-segurança negro George Floyd em Minneapolis, nos EUA, trouxeram à tona a necessidade de falarmos sobre o racismo.
A causa da morte de Floyd, conforme autópsia requerida pela família dele, foi asfixia devido à conduta de um policial que manteve o joelho em seu pescoço por 8 minutos e 46 segundos, sendo que nos últimos 2 minutos e 53 segundos a vítima já estava inconsciente. A frase "I can’t breath" ("Não consigo respirar"), que Floyd disse repetidas vezes enquanto sofria a violência, reverberou por todo o mundo. A hashtag blackouttuesday no Instagram ganhou notoriedade mundial no dia 2 de junho, para que todos se calassem e ouvissem a voz das pessoas negras.
Conforme informações do Atlas da Violência de 2019, estudo feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 75% das vítimas de homicídio no Brasil são pessoas negras. As demais estatísticas de outras questões também não são favoráveis à população negra brasileira. Sendo assim, é necessário falar sobre condutas criminosas contra os negros e as consequências jurídicas disso.
Pois bem. Primeiramente, cumpre discorrer sobre o racismo e as condutas que o caracterizam, as quais estão presentes na Lei 7.716/1989. Todos os crimes previstos nesta lei têm como núcleos, predominantemente, os verbos "impedir, obstar, recusar, negar". Em termos gerais, se a pessoa sofrer qualquer tipo de obstáculo, um tratamento injusto para acessar algo e a motivação for a sua cor, raça, etnia, religião ou procedência nacional, ela estará sofrendo um crime de racismo. As penas dos tipos previstos na Lei 7.716/89 variam entre 2 e 5 anos de reclusão.
Destacam-se as condutas do art. 20 do referido diploma legal, que dispõe uma das práticas mais comuns do crime de racismo: "Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional".
Nesse ponto, é necessária uma breve distinção entre discriminação e preconceito. O preconceito está na esfera subjetiva do agente e diz respeito à crença da pessoa sobre determinado assunto, a qual está contaminada por uma concepção presente no campo ideológico, sem validade informativa ou científica. A discriminação, por sua vez, é a materialização do preconceito por meio de uma ação do agente, mediante imposições ou exigências desarrazoadas, no sentido de excluir, distinguir, estabelecer uma preferência. Sendo assim, se o agente praticar, induzir (criar no outro a ideia) ou incitar (reforçar uma ideia já existente na mente do outro) a discriminação ou o preconceito de raça ou cor, estará praticando o crime de racismo.
E se uma pessoa negra praticar racismo contra outro negro? Ela estará isenta de uma responsabilidade penal? Certamente que não. Conforme leciona Nucci sobre o assunto "um negro que odeia negros, por exemplo, não tem o direito de, valendo-se de sua condição, disseminar o ódio racial". Ora, o objetivo da Lei 7.716/89 é justamente combater o ódio e a intolerância, sendo que ela não especifica que o autor do crime de racismo tem que ser de uma cor diferente da vítima. Portanto, não há lugar para o chamado "autorracismo".
Por fim, é importante falar aqui sobre o crime de injúria racial, que é comumente confundido com o de racismo. Esse crime está presente no art. 140, §3º, do Código Penal Brasileiro e possui uma sanção de 1 a 3 anos de reclusão. Injuriar é ofender a honra subjetiva de outrem, e, no caso da injúria racial, o criminoso utiliza da raça/cor da pessoa para ofendê-la. Ou seja, na injúria racial há o uso de palavras depreciativas relacionadas à raça/cor da vítima para provocar um mal-estar nela. Um exemplo ocorreu no episódio em que um jogador de futebol foi chamado de "macaco" por um torcedor do time adversário durante o jogo.
Ou seja, enquanto o crime de racismo está relacionado a uma ação discriminatória ou preconceituosa que tenha por objetivo excluir a vítima, na injúria racial o criminoso profere xingamentos contra a pessoa para que ela se sinta mal pela sua raça, cor, etnia, religião, origem ou condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência.
Outra diferença substancial entre os dois crimes está no fato de o racismo ser um crime inafiançável e imprescritível e a injúria racial não. Justifica-se essa distinção pelo fato de o racismo ser um crime mais grave, pois ele provoca uma afronta mais significativa ao princípio da igualdade e uma barreira maior entre pessoas de cores diferentes.
Apesar das disposições legais e constitucionais sobre a questão, ainda há vários obstáculos na realidade em que vivem os negros, sendo que todo preconceito e discriminação que eles sofrem diariamente possuem uma construção histórica de séculos. Infelizmente, existe uma grande dificuldade para se quebrar esse paradigma. De todo modo, percebe-se uma desconstrução dessa cultura preconceituosa e uma gradativa conscientização da população em geral, conforme pudemos perceber pela revolta por trás da morte de Floyd. Vidas negras importam sim, e muito. Que vença sempre a igualdade.