Em 21/11/2019 às 16h22
Renato Campos Andrade*
Não é incomum ver nos noticiários matérias referentes a ações de reintegração de posse em que judicialmente foi deferida a liminar para desocupação. A reintegração se trata de uma ação de natureza possessória para recolocar o possuidor no bem esbulhado (tomado).
Ocorre que, em muitas oportunidades, o imóvel é ocupado por um assentamento com considerável número de famílias que habitam o local há anos. Nesse ponto, surge um conflito complexo entre proprietário e ocupantes, a ser ponderado de acordo com a propriedade privada e sua função social.
A situação se agrava quando o proprietário é um ente público, visto que o prejuízo à propriedade atinge toda a coletividade. Nessa hipótese, tem-se o bem público de um lado (que deve ser protegido, visto que interessa a todos) e o dever do Estado em prover vida digna e moradia a todos os cidadãos. Tal direito se encontra constitucionalmente garantido no artigo 6º: "são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição".
Dados de 2010 já revelavam a grande desigualdade espalhada pelo Brasil, em que parcela considerável da população vive em assentamentos precários, assentamentos informais ou domicílios inadequados. Em média, 41,4% das pessoas vive nessa injusta condição. Em alguns estados, o número é ainda mais absurdo, como em Rondônia (86,3%), Amapá (88,5%) e Pará (85,2%). Mesmo no estado mais rico do país, São Paulo, existe um contingente enorme. Cerca de 23,7% dos habitantes não possuem uma moradia digna.
A administração pública tem o dever de cuidar dos cidadãos, zelar e proteger o patrimônio público. Nesse sentido, vale a leitura do artigo Invasões de terrenos públicos: responsabilidade do poder público, do advogado, especialista em Políticas Públicas de captação de recursos externos e parcerias público-privados, doutorando em Direito Internacional e mestre em Direito Internacional, Thiago Ferreira Almeida.
"Por exemplo, uma invasão irregular em terreno público destinado à construção de escola pública impede a oferta de ensino em local próximo à sua localidade. Por outro lado, as moradias irregulares constituem-se exemplo do déficit da atuação do poder público em atender às demandas mínimas de moradia de sua população."
É dever constitucional regularizar essa complexa e difícil situação. Contudo, existem fatores jurídicos a serem levados em consideração. O primeiro deles é que não é possível usucapião de bem público. Significa dizer que ainda que um grande número de pessoas invada e permaneça em um terreno público por anos a fio, não irá adquirir a propriedade por meio da usucapião.
O Código Civil tem disposição literal sobre o assunto no artigo 102. Os bens públicos não estão sujeitos a usucapião. Essa questão é tema do artigo Usucapião e a efetivação do direito à terra e à moradia, dos advogados e integrantes da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (Renap), Larissa Vieira e Renan Resende da Cunha Castro. Eles discorrem sobre as espécies de bens públicos (uso comum do povo, uso especial e dominical) e relatam que existe discussão quanto à flexibilização da impossibilidade de usucapião.
"A possibilidade de usucapião de bens públicos sem a destinação social para beneficiar famílias pobres que ocupam essas áreas, no campo ou na cidade, deve ser defendida e implementada. É dever do Estado também efetivar não só a reforma agrária como o direito à moradia."
Uma forma de enfrentar a situação está nas concessões de uso especial e de direito real de uso, tratadas pelo advogado e pós-graduando em Direito Administrativo, Guilherme Ribeiro Valadares do Amaral, no artigo Instrumentos de regularização fundiária de bens públicos. Ele explica os requisitos e consequências da concessão desses direitos reais, que guardam semelhanças com o direito de propriedade.
"O ordenamento jurídico brasileiro encampa uma série de medidas de regularização fundiária que, de modo geral, formalizam ocupações irregulares. Efetivam, assim, a devida ordenação urbana, sendo que, em se tratando de imóveis públicos ocupados, tal regularização se dá, especialmente, por meio da concessão de uso especial para fins de moradia e da concessão de direito real de uso."
Parece claro que o Direito deve cumprir o princípio da operabilidade, de maneira a servir para realizar direitos e ser aplicável, mesmo em casos complexos. Há de se ter mecanismos para que os princípios constitucionais se irradiem por todo o ordenamento e cheguem aos casos concretos. A impossibilidade de usucapião não pode significar omissão do poder público, sendo necessária a ponderação de princípios e utilização de outros mecanismos para a realização do direito fundamental à moradia e dignidade da pessoa humana.