Em 08/10/2019 às 15h28
Por Gilmar Pereira
Emmanuel Levinas é um filósofo franco-lituano pertinente aos nossos tempos. Sua atualidade se dá não só por ser um pensador recente , que viveu entre 1906 e 1995, mas porque sua obra toca em pontos fundamentais que podem responder aos problemas de hoje.
De origem judia, Levinas esteve nos campos de concentração nazistas, onde se deparou tanto com a nobreza quanto com a barbárie humanas. Sua filosofia parte dessa experiência, mas é também devedora de Husserl e Heidegger. Contudo, rompe com este último por sua cumplicidade com a perseguição do partido de Hitler aos professores judeus. Isso faz com que Levinas se dê conta também da cumplicidade da razão com o mal e veja que a filosofia se assentava sobre bases equivocadas.
Em busca do ser, da essência das coisas, a filosofia acabou perdendo o contato com o real, sobretudo com o ser humano concreto e objetivo que está diante de cada um, o qual chama de outro. Assim, por exemplo, pode-se filosofar sobre a pobreza sem de fato se importar com o outro que está passando necessidade. Para Levinas, a filosofia primeira não é a ontologia, com suas questões sobre o ser, mas a ética; a segunda, consequentemente, seria a política. Por isso, ele introduz na filosofia temas considerados menos importantes por outros pensadores, como a fome.
De modo geral, Levinas não se preocupa com princípios gerais e universais, não se prende a abstrações intelectuais. Ao contrário, o importante para ele é o rosto do outro. Qualquer coisa deve decorrer disso, não o contrário. Sua filosofia não trata do ser humano genericamente, mas busca considerar a unicidade de cada qual que está diante de si.
Em épocas em que se tem medo de migrantes e estrangeiros, categorias genéricas que massificam pessoas, Levinas convida a olhar o rosto do refugiado que chega na praia em uma embarcação frágil, desesperado e faminto. Em tempos de rivalidades entre partidos e ideologias gerais, o filósofo convoca a ver a pessoa objetiva que está diante de si antes de categorizá-lo, perdendo seu rosto. É este, o rosto do outro, o parâmetro da ética: resposta à intolerância e ao mal.
Com a urgência das contribuições do pensador lituano para a atualidade, a Dom Helder Escola de Direito e o Centro Brasileiro de Estudos Levinasianos (Cebel) promovem o IV Seminário Internacional Emmanuel Levinas, de 8 a 10 de outubro. O evento tem como tema "O sentido do humano – ética, política e direito em tempo de mutações" e conta com conferencistas de renome nacional e internacional.
Em entrevista ao Dom Total, o doutor Nilo Ribeiro Júnior, professor de filosofia na Faculdade Jesuíta (Faje) e presidente do Cebel, apresenta o pensamento levinasiano.Qual a pertinência de se estudar o pensamento de Levinas?
Certamente se deve ao fato de o pensamento de Levinas se tecer em torno da questão dialógica fundamental que se contrapõe ao pensamento monológico, monocular, unívoco. A ética é ótica, isto é, a perspectiva com a qual vivemos e nos movemos em todos os âmbitos da vida humana. É como se esse pensamento quisesse ressuscitar em nós o desejo de reinventar o mundo a partir das relações e não da solidão do indivíduo.
A ética, nessa perspectiva da alteridade, tem a pretensão de ressignificar o sentido da ação humana. Ela já não é pensada em função do protagonismo do sujeito da ação – a partir do qual tudo se orienta – nem de seu objetivo pré-conhecido, mas movida pela surpreendente relação com o outro, isto é, pelo embate que a chegada de outrem suscita no corpo e na mente. Antes, a ética é viva porque se tece pela imediação de um face a face ou de um corpo a corpo com o outro. E isso ocorre cotidianamente, quando do aparecimento de alguém (outrem) em nosso caminho – seja em nossa própria casa, de maneira mais próxima possível, seja na rua, no ambiente de trabalho, no ônibus – lá, onde alguém vindo de alhures (que não se sabe de onde vem) nos olha e nos desinstala, nos interpela, a ponto de descentrar-nos daquela lógica previamente estabelecida sugerida pelo ethos, pelos padrões do já sabido, do conhecido e até mesmo do esperado.
Enfim, o pensamento de Levinas se revela extremamente atual porque trata de devolver a lógica da ação humana àquilo que é da ordem de um por-vir, de uma boa notícia em meio a um mundo cada vez mais formatado pelos algoritmos e pelas significações técnico-digitais de nosso mundo programável e previsível, pelas seguradoras de todas as horas. Nesse sentido, um Rosto pode deflagrar nova compreensão da própria subjetividade humana e, por antonomásia, uma nova maneira de organizar a vida social, política, cultural e planetária. Sem a reabilitação do Outro estamos todos fadados a devastação da terra, do estrangeiro, dos vulneráveis, enfim, de nossa própria existência pessoal.
Muitas vezes a filosofia se comporta de maneira especulativa. Mas Levinas se insurge contra isso, dizendo que a razão pode ser conivente com o mal. O que o levou a pensar assim?
De fato, o pensamento de Levinas é insurgente, quase ao modo de um manifesto, de um protesto que não cabe nos cânones da filosofia clássica qual um sistema organizado de ideias, pensamentos e maneiras de agir etc. Segundo ele, todo pensamento extremamente sistemático é passível de se tornar totalizante porque corre o risco de se cumprir como um sobrevoo do real e cair nas abstrações mais etéreas do Espírito, sem levar em conta aquilo que mesmo a história não pode prever nem dizer a partir de ideias claras e distintas. Há algo na própria história que é da ordem da carne, isto é, da ordem do factível, porque nela se tramam relações que escapam do saber feito conceito e que, portanto, esse drama de relações humanas podem, a partir de sua carne, informar o saber a ponto de gestar um outro modo de ser e de pensar. Ora, na medida em que o sistema ocupa o centro do pensar, há chance de ele se tornar um pensamento da totalidade e, consequentemente, o risco eminente de se promover e corroborar a instalação dos totalitarismos com toda sorte de violência contra o outro.
Para além, do fato do pensamento de Levinas ter advindo das margens do mundo – uma vez que o filósofo procede da Lituânia, país periférico da Europa da Ilustração, e para além do fato de ser judeu e ter sido formado por uma outra fonte de sabedoria judaica, que não advém propriamente do Logos segundo a forma do pensamento greco-romano –, o fato é que as duas guerras mundiais, sobretudo com o desfecho trágico do Holocausto, conferiram ao seu pensamento uma configuração muito singular. Claro, com as devidas matizações necessárias, se poderia dizer que Levinas anteviu subjacente ao horror do hitlerismo uma forma de filosofia, isto é, uma forma de pensar totalizante e totalitária que encontrou um terreno propício para se legitimar na ontologia de Heidegger e vice-versa. É nessa ótica que Levinas insiste que todo pensamento que se pretende totalizante, monológico, traz em si o gérmen do Mal do Ser, porque um pensamento anônimo da existência pode prescindir dos existentes e se revelar incapaz de acolher e dar voz ao Outro. E nesse caso, o pensamento do Ser é sempre um pensamento violento porque é indiferente ao Rosto que é singular. Por isso, todo pensamento totalizante produz em torno de si uma atmosfera pesada que confina o outro aos seus campos de força, referência metafórica, para expressar a realidade dos trágicos campos de concentração que dizimaram milhões de seres humanos (judeus, ciganos, homossexuais).
Para Levinas, a filosofia primeira é a ética e a segunda, política. Porquê?
A ética é filosofia primeira no sentido que dissemos anteriormente, a saber, de uma ótica a partir da qual tudo recebe sentido antes de toda significação na linguagem. Não se trata de pensar primeiro a ética e segundo a política como em uma ordem cronológica, mas de dizer que "o sentido de todos os sentidos", isto é, o sentido da política, do social, do religioso, do histórico, do cultural etc., passa pelo crivo da lei, da interdição do mandamento ético inscrito no Rosto humano: não matarás. Dito de maneira positiva, o sentido se significa no Dizer de um Desejo do (in)desejável Outro como amor ao outro e que esse Desejo deve presidir a Justiça que se deve encarnar na vida social e política. Evidentemente, se a relação entre ética e política não é da ordem meramente cronológica, sequer sincrônica entre Amor e Justiça, isso significa que a Ética é da ordem de uma Linguagem primeva, de um Dizer que deve se dizer e se desdizer constantemente nos ditos da Política, da economia, do direito, das culturas etc. Por outro lado, os Ditos da Política, da Justiça são absolutamente urgentes enquanto cumprimento da Justiça, a fim de que o Amor, o Desejo, o Dizer ético não seja acusado de romântico ou de um altruísmo ingênuo ou ainda de um idealismo mais abstrato que os sistemas filosóficos.
O que é o "Rosto do Outro"?
Se você me permite, eu reformularia a questão para situá-la na maneira como Levinas pensa e diz o Rosto. Porque ao ceder lugar à pergunta pelo "o que é" corre-se sempre o risco de tentar definir um rosto humano, de adjetivá-lo, de qualificá-lo, de contextualizá-lo, quando na verdade Levinas procura sair disso, porque do contrário se pode cair numa aporia ou mesmo numa antinomia do pensamento. Porque se eu digo que o Rosto é belo, é jovem, é "isto ou aquilo" para contrapô-lo ao discurso que o aprende, estou a reduzi-lo à percepção, quando na verdade o Rosto é sempre mais e menos que a percepção. Ora, como se trata de sair do pensamento monológico, totalizante, que o autor identificou de alguma forma com o Ser da ontologia ou com a Razão anônima, claro, nesse caso, o Rosto teria de ser desontologizado para ser retirado das malhas do saber que são sempre redutoras e violentas. A fim de sair dessa esteira do pensamento da totalidade, Levinas dirá num primeiro momento que Rosto se adequa a uma "significação sem contexto", isto é, se significa a si mesmo. Por isso, ele não pode ser reduzido a um conjunto plástico, uma forma na qual sobressai o caráter estético da investigação sobre ele, nem pode ser identificado à sua autoctonia, sua cultura, seu lugar social etc. Antes, o Rosto como um Dizer, como Palavra, como Revelação, como Epifania, jamais cede lugar à visão, ao horizonte no qual poderíamos situá-lo para falar dele, com ele ou sobre ele. O Rosto, por sua vez, suscita uma auscultação embora possa ser visto. Rosto, portanto, não se vê propriamente, não se define, mas se escuta, isto é, lá onde se escuta uma voz, um grito, um gemido, um silêncio mortal de um último sopro/som de um outro humano, eis o Rosto como um Enigma. Portanto, lá onde alguém protesta ou alguém fala em nome de um Rosto, o outro se apresenta e se retira como signo de um Rosto que se torna signo de um corpo que o defende. Em suma, um Rosto se faz presença/ausente como rastro do infinito.
Em épocas como a nossa, em que se tem medo dos migrantes e estrangeiros, LGBTs e outras categorias nas quais as pessoas são massificadas, épocas em que imperam rivalidades entre partidos e ideologias gerais, o que Levinas pode nos ensinar?
Se há na contemporaneidade um pensamento que não parte do eu, do Mesmo, da reflexividade e da interioridade do Sujeito, mas parte da outra margem, do outro que me é estranho e que se rebela ao idêntico, isso significa que se desenha diante de nós uma nova possibilidade para se pensar a (in)condição humana de estrangeiros. Isso significa de maneira mais abrangente dizer que na ótica de Levinas há que suspeitar, isto é, que exercer um certo tipo de ceticismo com relação à condição existencial marcada pela ideia de enraizamento de ser-no-mundo, porque não podemos simplesmente nos afirmar a partir de uma autoctonia ingênua que camufla certo falseamento de nossa possível usurpação da terra. Nós não somos "donos" de um lugar e ocupantes desse lugar como maneira de dar corpo ao ser. Antes de mais nada, somos acolhidos pelo lugar de tal sorte que a hospitalidade nos é dada pelo outro como verdadeira (in)condição humana. Na verdade, isso tem repercussões enormes para as questões intersubjetivas, sociais, políticas, culturais no trato com os estrangeiros e os migrantes.
A hospitalidade do outro já nos põe na condição de estrangeiros da terra, de sorte que o outro, o absolutamente outro que não cabe na minha esfera de idêntico, surge como aquele que nos recorda constantemente nossa condição extra-territorial, bem como nos faz perceber que ser estrangeiro em terra própria já nos obriga, não por uma obrigação kantiana, mas que nos obriga por uma sensibilidade à flor da pele de nossa responsabilidade pelo outro que já nos habita, que habita nosso próprio corpo quando chega como estrangeiro. Na perspectiva da antropologia do homem-sem-lugar-no-mundo diante do outro, já não podemos poder resistir-lhe em deixá-lo inabitar nossa pele. Não se trata de uma decisão consciente, deliberada segundo a mera reciprocidade e conforme a ideia de reconhecimento do outro como um igual a mim, mas de saber-se paradoxalmente estrangeiro de um lugar e morada (hospitalidade) de outro que me toma de assalto com sua chegada e me faz ter de vesti-lo, alimentá-lo, protegê-lo, enfim, de amá-lo, embora tudo isso não dispense o direito, as instituições, as leis, etc., mas sempre um direito calcado no direito do outro.