Em 04/09/2019 às 12h58
Por Thiago Moreira*
A construção de um sistema constitucional sólido e perene, no qual haja uma organização eficaz e fluida dos poderes que compõem uma república, como no caso da brasileira, demanda que Legislativo, Executivo e Judiciário tenham entre si uma convivência harmônica e independente. Uma observação é necessária, pois, apesar de se dizer "poderes" da República, no plural, é importante ressaltar que o poder político é uno e indivisível, ocorrendo apenas uma tripartição em razão das funções essencialmente exercidas, seja legislar, administrar ou julgar segundo o ordenamento jurídico.Falar de uma relação de harmonia e independência entre os poderes é de importância última, haja vista que nos traz a maneira pela qual devemos enxergar a atuação de cada um dos poderes ou funções representadas e seus agentes. Isso significa que, ao mesmo passo que tais poderes têm a liberdade de atuar em suas funções atribuídas constitucionalmente, devem respeito aos ditames da mesma Constituição e às atribuições dos demais poderes, não podendo extrapolar sua competência no exercício de suas atividades, provocando eventuais transtornos, dissonâncias e conflitos institucionais que somente trazem desconforto e prejuízos ao bom andamento da ordem jurídica e política nacional como um todo.
Todos os poderes têm suas funções e atribuições, mas também tem suas responsabilidades e limites. Estamos falando de um sistema de freios e contrapesos, no qual há uma atuação de colaboração e controle recíproco entre os poderes, cada qual em uma relação de constante atuação funcional de suas atividades, vigiando e sofrendo vigilância, para que não caiamos em um sistema no qual o poder e suas atribuições recaiam em um regime sem restrições ou limites.
Como dito, todo poder tem suas atribuições traçadas constitucionalmente. É o caso do Poder Executivo, cujo chefe, em âmbito federal, é o presidente da República. Dentre suas atribuições dele está a prerrogativa de expedir medidas provisórias, que são atos normativos com força de lei. Vale ressaltar que esta é uma atribuição atípica do Executivo, pois não cabe a ele legislar fora do que foi permitido constitucionalmente. Entretanto, tais medidas provisórias não podem se apresentar como um exercício da criatividade do chefe do Executivo. Ou seja, ele não está diante de uma atribuição irrestrita, na qual seria capaz de fazer valer suas vontades e anseios sem que estivesse subordinado ao texto constitucional.
É em razão disso que o texto constitucional limita o alcance de tal prerrogativa, instituindo barreiras tanto no campo das matérias que podem ser tratadas por meio de medidas provisórias, quanto às situações que podem dar ensejo ao seu implemento, tendo em vista que tais medidas somente podem ser expedidas diante de casos de relevância e urgência, com posterior submissão ao Congresso Nacional.
Somando-se a tais barreiras constitucionais, encontramos no sistema de freios e contrapesos a possibilidade de eventual controle por parte do Judiciário, em face de possíveis excessos no exercício das atribuições. Por certo, o exame judicial da conformidade das medidas provisórias tem como seu parâmetro a Constituição da República de 1988. Sendo assim, o julgador, ao ver que a medida provisória, ou parte dela, possui algum vício de cunho constitucional, o caminho é a declaração de sua inconstitucionalidade.
Usualmente, o Supremo Tribunal Federal (STF) é levado a se pronunciar sobre o tema por ação direta de inconstitucionalidade (ADI). Em tal ação analisa-se a conformidade do texto da medida provisória aos limites estabelecidos quanto à matéria, ou seja, se é ou não uma matéria que poderia ser tratada via medida provisória; o aspecto formal que compreende o caso de relevância e urgência, autorizador de expedição de tais atos normativos, compreende questão mais complexa, uma vez que, por ser um critério de cunho político, no qual, em princípio, quem deve estar apto a saber a conveniência de editar tal medida é o próprio Presidente da República, o STF tem se restringido a analisar o requisito de relevância e urgência em casos excepcionalíssimos "em que a ausência de tais pressupostos seja evidente", como se deduz da ADI 2.527, de relatoria de Ellen Gracie, ministra do STF à época.
Desta forma, existem dois pontos a serem analisados, um pertinente à matéria, este mais objetivo, bastando uma análise mais direta da conformidade ou não ao texto constitucional; e outra que trata do critério de ocorrência de um evento relevante e urgente que legitime uma medida provisória, critério mais discricionário e político sendo analisado em casos excepcionais, mas quando patente o desvio de finalidade ou abuso no poder de legislar há de ser declarada a inconstitucionalidade.
Por fim, é necessário ressaltar que, para que a República tenha seus preceitos democráticos em um sadio funcionamento, devemos zelar pelo respeito aos ditames constitucionais ao mesmo passo que, na distribuição de competências e atribuições, é preciso que atentemos aos seus limites em um sistema que privilegie a harmonia e independência entre as entidades e agentes que exercem as funções do poder político.