Em 21/08/2019 às 15h15

A responsabilidade civil do Estado no incêndio da Boate Kiss

É evidente a sucessão de erros por parte do Estado, tendo em vista que as fiscalizações, sem rigor, permitiram o funcionamento do estabelecimento.

Por Mirany Pedrosa de Almeida Júnior*

O incêndio na Boate Kiss, localizada em Santa Maria (RS), é o segundo maior em número de vítimas no país. Ao todo foram 242 mortes, ficando atrás apenas da tragédia ocorrida em dezembro de 1961, quando as tendas do Gran Circus Norte-Americano, que se apresentava em Niterói, pegaram fogo, deixando 503 pessoas mortas. Quando a notícia veio à tona, as famílias buscaram os responsáveis pela tragédia e poucos foram denunciados pelo Ministério Público na ocasião.

Sem entrar nas responsabilidades dos particulares envolvidos, é importante analisar a responsabilização civil do Estado diante do ocorrido. Primeiramente, entende-se por responsabilidade civil do Estado a obrigação imposta à fazenda pública de reparar danos causados a terceiros por ação ou omissão dos atos de seus agentes públicos no exercício de suas atribuições. A atividade exercida pela boate requer a autorização do Estado. E, sem prejuízo das demais fiscalizações, é necessária também a vistoria do Corpo de Bombeiros Militar para verificar as instalações, bem como o cumprimento dos planos de prevenção e combate a incêndio.

As investigações demonstraram que a boate era revestida por uma espuma, similar àquelas usadas para a fabricação de colchões, material este altamente inflamável. A banda que se apresentava no momento da tragédia utilizou, em um ambiente fechado, o artefato chamado "Sputnik", uma espécie de fogo de artifício, cujas recomendações de uso são somente para ambientes externos, pela alta emissão de faíscas. Por fim, apontado como principal causa da morte, o cianeto, substância altamente tóxica, se alastrou pelo ambiente fechado da boate quando ocorreu o incêndio.

Tornou-se então evidente a sucessão de erros por parte do Estado, tendo em vista que as fiscalizações, sem rigor, permitiram o funcionamento do estabelecimento. Alguns momentos sem o alvará de incêndio com vigência adequada, em outros sem o alvará de funcionamento e localização, ou, quando haviam, estes estavam com o prazo de validade superado.

O artigo 37 da Constituição da República dispõe que: "a administração pública direta ou indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência". O parágrafo 6º do mesmo dispositivo constitucional prevê que: "As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa".

O que importa aqui é a verificação da responsabilidade do Estado na situação específica do incêndio na boate, na qual houve a constatação de ausência de legalidade e eficiência. Mesmo com a documentação de licença vencida ou ausente, não houve rigor para exigir o fechamento até a adequação dos planos preventivos necessários. Sem apontamentos pessoais, temos no caso que o Estado, assim como em outras situações, deixou de cumprir com o seu papel fiscalizador, e, quando necessária sua efetividade para com a sociedade, mostrou-se ineficiente. Tecnicamente o Estado tem a obrigação de fiscalizar e fazer cumprir suas exigências que são elaboradas mediante estudos técnicos.

Quando situações de ineficiência do Estado ocorrem, o cidadão atingido tem duas alternativas para buscar o ressarcimento dos prejuízos: a via administrativa, mediante requerimento direito da vítima, seu representante legal ou seus sucessores, ou pela via judicial, propondo-se a ação indenizatória contra a fazenda pública e o agente envolvido. Em ambas as situações, poderá o Estado voltar-se, regressivamente, contra o agente que deu causa ao evento danoso, conforme permissão legislativa, para se criar um equilíbrio, pelo princípio da igualdade. Isso porque o erário responde pelo pagamento do valor de indenização sentenciado ou acordado em conciliação.

Em todas as situações, é necessária a comprovação do dano, nexo de causalidade e culpa ou dolo do agente. Dada a repercussão nacional do caso, o sentimento de vazio, dor e irreparabilidade é manifesto. Ainda que milhões sejam pagos pelo Estado ou pelos particulares, as vidas que se foram não serão restituídas. O que ficou foi o aprendizado doloroso para que a fiscalização e o rigor dentro da legalidade sejam considerados com mais seriedade, não apenas como método de tributação, mas como modalidade de respeito àqueles que confiam e esperam do Estado uma atuação incisiva, justa e coerente.