Em 14/08/2019 às 13h04
Por Carolina Almeida de Paula Freitas*
O Poder Judiciário, rotineiramente, é provocado para pacificar conflitos que põem frente a frente os princípios constitucionais da liberdade de expressão (artigo 5º, inciso IX) e o de proteção à honra e à moral (artigo 5º, inciso X). Com certa frequência, essa discussão judicial encontrou contornos quando determinadas autarquias federais, que regulamentam e fiscalizam o exercício de profissões, consideraram ofendidos direitos dos profissionais nelas inscritos.
Um exemplo recorrente em nossa memória foi o do uso de fantasias nas festas de carnaval, em programas de televisão, de enfermeiras. Nessas situações, as fantasias tinham conotação sexual, consideradas, por muitos, depreciativas da imagem do profissional. Um caso bastante conhecido foi o da "enfermeira do funk". Uma modelo se apresentava em programas de televisão e em shows vestida como se fosse uma enfermeira sedutora, em poses efêmeras e dançando funk de forma vulgar.
Assim que surgiu essa personagem, muitos profissionais da área se indignaram, sentindo-se afrontados e ofendidos em sua honra, considerando que as apresentações da modelo denegriam a imagem deles como profissionais, ridicularizando-os. Outros tantos casos, semelhantes ao da espécie, foram apresentados para solução jurídica. As ações propostas, em sua maioria, foram as civis públicas.
Surgiu o confronto de princípios constitucionais. O Conselho Regional de Enfermagem (Coren) buscava impedir o uso das fantasias e/ou veiculação de matérias em televisão e teatros. Do outro lado, a modelo (fantasiada) e seu empresário sustentavam que a ação proposta contra eles consistia em afronta ao princípio constitucional da livre expressão.
Os tribunais brasileiros enfrentaram questões desta natureza e sedimentaram entendimento. E o que eles decidiram? A apresentação da "enfermeira do funk", em programas de televisão, teatro e em bailes ofenderia a profissão? A resposta é não. Para o alcance desta consolidada decisão, em que garantias constitucionais foram invocadas e confrontadas, os julgadores, valendo-se da melhor técnica e diante da inexistência de hierarquia entre os princípios constitucionais (têm a mesma importância, no plano teórico), ponderaram valores, considerando outros três princípios: o da unidade da Constituição, da proporcionalidade e da razoabilidade.
A Constituição Federal, em seu artigo 5º, consagra os direitos e garantias fundamentais: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade".
Vale atentar para os incisos IX e X:
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
O ministro Celso de Mello, relator do MS 23.452 – RJ, discorreu sobre esse embate: "Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas – e considerado o substrato ético que as informa – permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros".
Pela busca da harmonização dos interesses, os julgadores decidiram que, no caso em questão, a garantia constitucional de proteção à honra e à imagem não tinha força suficiente para coibir ou relativizar o outro direito fundamental a ele contraposto, o de liberdade de expressão.
Em decisão na qual questão similar foi apreciada, o relator da apelação cível, Leopoldo Muylaert, do TRF-2, nos autos 2005.51.01.008126-0, ressaltou:
Todavia, é bom que fique registrado, a inadmissibilidade constitucional da censura não está a autorizar que a imagem e a honra das pessoas possam ser maculadas por ofensas de toda a sorte, inclusive aquelas decorrentes de veiculação através de programas televisivos. Não estamos aqui a defender comportamentos nefastos e agressivos por parte de setores da mídia, que, infelizmente, ocorrem com certa frequência. É certo que a exposição do profissional de enfermagem de forma imoral, depreciativa e apelativa é totalmente descabida. Sempre que isto ocorrer, sempre que o limite do razoável for ultrapassado, estará o COFEN autorizado a agir em nome da categoria, trazendo a demanda ao Judiciário. No entanto, no presente caso, tal não ocorreu.
Assim, há que se buscar, com a devida prudência, o exato ponto de equilíbrio, sintonizando os aspectos social e jurídico. Não podemos conceber, portanto, que o momento sexual experimentado pela sociedade brasileira possa amparar concepções equivocadas como as da parte autora. O avanço da sexualidade vivenciado pelo mundo atual não pode ser desprezado pelo aplicador do Direito. Logo, inaceitável acreditar que tais cenas, dentro do contexto humorístico em que foram divulgadas, não sendo elas ofensivas, apelativas ou imorais, possam ser prejudiciais à imagem da categoria.
Em outra decisão, o juiz federal da subseção judiciária de Juazeiro, Eduardo Gomes Carqueija, ao decidir a ação civil pública (autos 58-60.2013.4.01.3305) proposta pelo Coren, afirmou que "com essa caracterização de enfermeira dos carnavalescos travestidos, o desfile exporá uma sensualidade algo grotesca, extremada e caricata, porém, própria do carnaval. Não se assoma nada além disso, tampouco a vaticinada situação vexatória a todos os profissionais de enfermagem ou intenção de denegrir a categoria. O que a petição inicial transborda é, sim, um moralismo repressor e um totalitarismo incompatível com o valor maior da liberdade. A construção de uma sociedade livre ainda é um dos objetivos da República Federativa do Brasil (CF/88, artigo 3º, inciso I)."
Deste modo, consideram os magistrados, que o uso das fantasias de enfermeiras com conotação sexual, em um país de diversas manifestações culturais, configuraria, sobretudo, censura ao pensamento e aos movimentos artísticos, prevalecendo, nestas situações a garantia constitucional da livre expressão e do pensamento.