Em 19/06/2019 às 13h28
Por Cíntia Nogueira de Lima Valle*
Mais de 40 mil ações[1] tramitam atualmente na Justiça brasileira para que o Judiciário que obrigue o Estado a resolver aquilo que deveria ser a sua função primordial: fornecer um tratamento de saúde gratuito e adequado aos cidadãos. A questão da saúde já não era tão simples quando se tratava das doenças corriqueiras, hospitais e postos de atendimento abarrotados de pacientes, ausência de profissionais e o sucateamento dos aparelhos e até da própria unidade de atendimento. O que dizer então sobre os chamados medicamentos de alto custo ou experimentais, que não estão na lista do Sistema Único de Saúde (SUS) ou não estão registrados na Agência Nacional de Saúde (Anvisa)?
A Lei 8.080/90, que traz as regras de organização e funcionamento dos serviços de saúde, é enfática ao dizer que os procedimentos ou produtos experimentais não autorizados pela Anvisa não serão fornecidos pelo SUS, sendo vedado, inclusive, qualquer tipo de ressarcimento posterior. Para que se possa dimensionar o problema, basta imaginar um caso onde um cidadão é acometido por uma doença rara que não possua tratamento disponível na rede pública. Nesse contexto, suponha a existência de uma nova medicação que venha sendo testada há tempos em outro país, demonstrando grandes resultados e alta capacidade de cura. Ocorre que o alto custo desse medicamento inviabilizaria a sua aquisição, tornando inacessível o tratamento para esse cidadão. Diante deste quadro hipotético, mas bem pouco fictício, esse cidadão decide recorrer ao Judiciário para que este obrigue o Estado a custear todo o seu tratamento.
O Estado, por sua vez, ao ser demandado, justifica que o dispositivo que proíbe o fornecimento dessa medicação foi considerado constitucional, ou seja, não contraria a nossa Lei Maior. Segue se defendendo ao dizer que deve obediência a um orçamento previamente existente para a saúde (princípio da reserva do possível), afinal, a medicação de alto custo de um paciente seria o equivalente à previsão do Estado para tratar outros milhares, razão pela qual não irá fornecer a medicação.
Pareceria injusta, ao primeiro golpe de vista, uma decisão que acatasse prontamente os argumentos do Estado. Isso porque, quando há uma grande tensão entre princípios contrapostos, parece razoável que o princípio à vida digna prevaleça sobre o princípio da reserva do possível. Porém, neste embate entre o direito à saúde e a impossibilidade do Estado atender a todas as demandas, alguns outros vieses, de cunho político e social, merecem ser contextualizados.
Fato é que, até 2011 (ano em que a Lei 8.080/90 foi modificada), o Brasil estava vivenciando outra epidemia: a da judicialização da saúde. Privilegiava-se financeiramente aqueles que buscavam o seu tratamento pela via judicial, em detrimento de outros que seguiam a via comum. Soma-se a isso uma torrente de decisões judiciais sem qualquer respaldo técnico. A maioria dos pedidos que chegavam à Justiça alegando "risco de morte" eram prontamente atendidos. Bastava um laudo médico particular confirmando a necessidade de determinado medicamento. Essa questão colaborou para a perpetuação da má-fé de alguns profissionais da saúde que, em conluio com alguns laboratórios ou fabricantes de próteses, enganavam seus pacientes dizendo que apenas o medicamento "x" ou "y" poderiam garantir a sua saúde.
O Supremo Tribunal Federal (STF), que já havia se posicionado acatando a proibição de fornecimento de medicamentos pelo SUS, foi instado a se pronunciar sobre o assunto e assim o fez no julgamento realizado em 22 de maio de 2019. Na ocasião, a Corte decidiu que, embora seja constitucional a proibição do fornecimento de remédios não registrados na Anvisa, em casos excepcionais, que se encaixem em algumas condições, o SUS deverá custear essa medicação. Como casos excepcionais, o STF nomeou aqueles nos quais as doenças são consideradas raras e ultrarraras.
Assim, no caso hipotético narrado, o juiz condenaria o Estado a custear o medicamento se: fosse atestada a raridade da doença, comprovada a eficácia e regulamentação da medicação em outro país, comprovada a hipossuficiência econômica da parte e, ainda, que essa seria a única alternativa existente para o seu tratamento.
A decisão do STF vincula todas as demais decisões sobre o tema, ditando alguns limites para as decisões das instâncias inferiores, que deverão analisar com mais cautela o caso concreto antes de negar ou conceder um pedido de medicamentos, pacificando as divergências existentes até então sobre o assunto.